De cacau já foram as terras da Bahia: Ilhéus.





"Eu vou contar uma história, uma história de espantar".
Romanceiro Popular



Com essa frase Jorge Amado inicia o maior romance acerca da formação da zona cacaueira da Bahia, publicado em 1943. E onde eu entro nisso, onde nasce minha paixão por esse livro, lido e relido mais de uma dezena de vezes? Aproximadamente 38 anos após, quando vi uma capa de cores fortes sobre a mesa de cabeceira de minha irmã (uma edição do Círculo do Livro) e, mesmo alertada de que não era próprio para minha idade o li escondidinha - o proibido sempre tem um aroma especial. Foi a primeira obra do escritor baiano a passar por minhas mãos.



As imagens criadas ainda na infância, foram se transformando, se aprimorando, dentro de uma atmosfera cada vez mais critica acerca do universo social e político que se entrelaçaram na formação da sociedade que conhecemos, até a última leitura ao final de 2013, agora mais para entrar no clima da trip. Um romance que povoou meu imaginário, que despertou em mim um desejo, inúmeras vezes adiado, de conhecer Ilhéus, seu entorno, caminhar por suas ruas.

E o dia de percorrer as "Terras do Sem Fim" chegou e rodamos por aqueles caminhos, de Salvador a Ilhéus e de Ilhéus a Itabúna (antiga Tabocas), pelas estradas, pelos pastos e plantações que se formaram nas antigas matas do Sequeiro Grande. 


Ilhéus e seus habitantes estiveram presentes no imaginário de Jorge, tanto na critica politica quanto social e são o cerne de dois de seus principais romances: Gabriela, Cravo e Canela e de Terras do Sem Fim. Ambas histórias seguiram comigo, em minha bagagem emotiva. Mas ao chegar naquelas terras, embora tudo que se veja e que se ouça seja em torno de Gabriela, eram as histórias do Sem Fim que eu vislumbrava a cada metro de estrada, a cada sede de fazenda cacaueira, a cada esquina. Então, Ilhéus foi um misto, da alegria e sensualidade de Gabriela, as tocaias arquitetadas pelos Badarós. E, a todo instante, aquela frase voltava, sempre marcante: 

"... a melhor terra do mundo para o plantio do cacau, aquela terra adubada com sangue". 

A história do Cacau se mistura a história do escritor, desde seu nascimento na Fazenda Auricina até sua mudança para Ilhéus. Alguns biógrafos dizem que a mudança ocorreu ainda na infância do escritor, devido a um surto de varíola na região. Mas o que se ouve a voz corrente e pelos guias que acompanhavam grupos pela cidade é que a família passou a residir em Ilhéus após o patriarca ser gravemente ferido em uma tocaia - sim, seu pai foi também um desbravador, um sergipano que abriu a mata e plantou uma fazenda com o fruto dourado.



E ao chegarem em Ilhéus, ergueram um sobrado, pertinho da Igreja, de onde Jorge espiava a vida e lançava suas primeiras letras em uma pequena máquina de escrever, na escrivaninha abaixo da escadinha do sótão. E nós, ao rodarmos por aquelas estradas, curtimos o que resta das fazendas cacaueiras, com os telhadinhos móveis dos secadores de grãos. De resto, nada se percebe pelas ruas de Ilhéus, nomes como os da Família Badaró e de Horácio da Silveira só existem nas páginas já amareladas de minha edição da infância.




Seguindo por outro caminho, de uma critica social camuflada numa crônica de costumes, com muita sensualidade, temos a morena Gabriela e todo o imaginário em torno do livro de 1958. Basta chegar em Ilhéus para os nomes, as casas e as histórias saltarem aos olhos. Estão espalhadas pela cidade e narradas em placas, uma visita gostosa de fazer, seguindo as indicações, sem necessidade de guias. E por onde começar? Nós optamos por ter a Catedral de São Sebastião como ponto de partida e em dois dias percorremos os caminhos, entramos e saímos das casas, dobramos aquelas esquinas. Mas o centro histórico é diminuto, nada que não se possa fazer em meia tarde - nós dividimos entre um final de tarde e uma manhã.





 Encontramos pelas ruas a personificação do imaginário em torno de Gabriela. Do bar Vesúvio ao Bataclan, passando pelas residências de Misael Tavares e de Tonico Bastos, até chegar a morada da família Amado, hoje Casa de Cultura. Para quem quer olhar, é rápido; mas para quem deseja viver o momento, umas três horinhas são bem-vindas. 






A Catedral, já iluminada ao final da tarde, e o Palácio Paranaguá se mostram imponentes junto ao centro histórico de pequenas casas e sobrados.




O Palacete do Coronel Misael Tavares, salvo da degradação por um condomínio formado por Maçons, se encontra preservado, lindo e aberto ao público.


A residência de Tonico Bastos, nome de destaque na minissérie da Rede Globo, um dos amantes de Gabriela, se encontra nas proximidades do palacete, mas sem o mesmo brilho, com placas de uma empresa afixadas na fachada - mas está em pé!


O sobrado que mais atrai ao público e onde enfrentamos até fila para entrar é o da família Amado, no calçadão próximo a Igreja. Praticamente desguarnecido de móveis, conta com peças pequenas (bem estilo português), alguns vitrais, algumas peças pertencentes ao escritor, cartazes e capas de seus livros. Não há muita vida, mas um tantinho de histórias. Descobrimos, por exemplo, a origem dos recursos para a aquisição de tão bela residência no centro de Ilhéus. Pequeno fazendeiro, o pai de Jorge não contava com uma residência na cidade, luxo dos grandes produtores. Mas numa colheita as chuvas invadiram as plantações, arrastaram os frutos que já se encontravam prontos para a colheita e quebraram a safra, fazendo tremer até os mais afortunados. E foi nessa ocasião, que o pequeno cacaueiro viu suas terras serem invadidas pelas águas e para sua surpresa, ao baixarem deixaram os frutos trazidos pela enxurrada. Num ano desastroso, o pai de Jorge foi o único a "enricar" como se dizia por aquelas bandas. Verdade ou lenda? Sei não, mas que é uma boa história, isso é!!










E aí está a mesinha de Jorge, onde jogou nos papéis suas primeiras histórias.



Tudo em Ilhéus é um misto de realidade e ficção. Existiram Nacib e Gabriela? Os personagens das obras de Jorge são ficcionais? São histórias romanceadas ou apenas estórias? Acredito que muito tenha relação com a memória afetiva do escritor, daquelas histórias que ouvimos desde a infância, passadas dos avós para os pais até chegarem a nós, com o famoso quem "conta um conto, aumenta um ponto".



E a vida mundana, os copos batendo e a música, por onde estariam? Nas mesas do Bar Vesúvio e no palco do Centro Cultural Bataclan.

O Bar Vesúvio, imortalizado junto ao nome de seu proprietário ficcional Nacib - o turco, fica ao lado da Catedral. Parada turística, não foi diferente para nós, onde aproveitei para tomar um refresco de cacau, delicioso. O atendimento não é lá essas maravilhas, mas é muito bonitinho. Na saída, ainda dá para bater um papinho com o escritor, sentadinho em uma das mesas na calçada.




Algumas quadras em direção às águas de Ilhéus chegamos ao Bataclan, a casa de "tolerância" mais alardeada na literatura nacional, acredito. Casa de Maria Machadão, hoje abriga um simpático bar-restaurante, uma área para shows, além de um pequeno museu. E adivinhem se as principais peças do Museu não seriam aquelas integrantes do quarto de Machadão?!!








Bom, se em Salvador meu espirito consumista estava em férias, na lojinha do Bataclan ele entrou em atividade - mas como resistir aos caderninhos e cadernetas? Um imã? Local turístico, preços para turistas e lá se foram bons reais.


Menos imponente, mas não menos importante e simpática, é a Igreja Matriz de São Jorge dos Ilhéus (1556), junto ao palacete, onde nos abrigamos de uma manga d'água - uma rápida chuva de verão, da época das mangas.



A simpática cidade tem mais a oferecer do que as marcas de Jorge, tem um mar calmo "cor de canela"...





Com o cheiro do cacau nos acompanhando, percorremos mais de 100 anos de histórias, especialmente se considerarmos da formação da zona cacaueira contada em Terras do Sem Fim (1943), passando São Jorge de Ilhéus (1944) e chegando na formação social urbana contada em Gabriela, Cravo e Canela (1958). Uma verdadeira saga histórica, romanceada por um de nossos mais importantes escritores. A única tristeza é que as histórias vividas ou romanceadas ainda sejam tão atuais, a demonstrar nossa ilusão quanto a evolução de nossa sociedade - mas sofre só quem lê, não é mesmo?!! 

Sonho acalentado, vivido, realizado e, agora, dividido com vocês. 


4 comentários

  1. Ótimo post! Quase não tem relatos de Ilhéus nos blogs por aí! Não lembro de quase nada da cidade, mas era fofíssima.

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    1. Fernanda, acho que é mais frequentada por baianos, mesmo. Vi poucos turistas, só pequenos grupos naquelas vans que passam o dia. Nós pernoitamos numa das praias, tem lugares lindos por lá. Mas confesso que não pesquisei acerca de Ilhéus também, mas tive como motivo o roteiro temático. Voltaria para conhecer melhor as praias... Abraços!

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  2. Querida, o melhor texto ever. Maravilhoso, lembrei da história do Sem Fim, deliciosa. As emboscadas nas madrugadas e o canto das cobras que assustavam as mulheres. Parabéns!!!!!

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    1. História onde nasceram os desejos, a paixão, o roteiro. A razão do Caminho! Obrigadão!

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